Trechos de Suely Rolnik, Geopolítca da cafetinagem (Fazendo Rizoma, org. Beatriz Furtado e Daniel Lins)
Fortes ventos críticos tem agitado o território da arte desde meados da década de 1990. Com diferentes estratégias, das mais panfletárias e distantes da arte às mais contundentemente estéticas, tal movimentação dos ares dos tempos tem como um de seus principais alvos a política que rege os processos de subjetivação (especialmente o lugar do outro e o destino da força de criação), política esta própria do capitalismo financeiro que se instalou no planeta a partir do final dos anos 1970. O enfretamento desse campo problemático impõe a convocação de um olhar transdisciplinar, já que estão aí imbricadas inúmeras camadas da realidade, tanto no plano macropolítico (fatos e modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica) quanto no micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo e a subjetividade).
…cabe lembrar que o surgimento de uma questão se dá sempre a partir de problemas que se apresentam num dado contexto, tal como atravessam nossos corpos, provocando uma crise de nossas referencias.
É o mal-estar da crise que desencadeia o trabalho do pensamento – processo de criação que pode ser expresso por meio de forma verbal, seja ela teórica ou literária, mas também através da forma plástica, musical, cinematográfica etc…ou de forma simplesmente existencial.
Seja qual for o canal de expressão, pensamos/criamos porque algo em nossas vidas nos força a faze-lo para dar conta daquilo, que está pedindo passagem em nosso dia –a –dia – e, portanto, nada relacionado à noção de “tendência”, própria da lógica midiática e de seu principio mercadológico.
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A especificidade da arte (ou forma existencial) enquanto modo de expressão e, portanto, de produção de linguagem e de pensamento é a invenção de possíveis – estes ganham corpo e se apresentam ao vivo na obra. Daí o poder de contágio e de transformação de que é portadora a ação artística (existencial). É o mundo que está em obra por meio dessa ação.
Ao nos identificamos com a ordem segundo nossa percepção cortical e recusarmos a percepção do corpo vibrátil (subcortical) anestesiamos nossa vulnerabilidade e podemos manter uma imagem estável de nos mesmos e do outro, ou seja, nossas supostas identidades. Sem essa anestesia, somos constantemente desterritorializados e levados a redesenhar nossos contornos e nossos territórios de existência.
A neurociência, em suas pesquisas recentes, comprova que cada um de nossos órgãos dos sentidos é portador de uma dupla capacidade: cortical e subcortical. A primeira corresponde à percepção, a qual nos permite apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido. Essa capacidade, que nos é familiar, é pois, associada ao tempo, à história do sujeito e à linguagem…..essa capacidade cortical do sensível é a que permite conservar o mapa das representações vigentes, de modo que possamos nos mover num cenário conhecido em que as coisas permaneçam em seus devidos lugares, minimamente estáveis.
Já a segunda capacidade, subcortical, que por conta de sua repressão histórica é menos conhecida, permite-nos apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela o outro é uma presença viva feita de multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo….chamei de “corpo vibrátil” essa segunda capacidade de nossos órgãos dos sentidos em seu conjunto. É nosso corpo como um todo que tem esse poder de vibração às forças do mundo.
Entre a vibratilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que obedecem a lógicas totalmente distintas e irredutíveis. É a tensão desse paradoxo que mobiliza e impulsiona a potência do pensamento/criação, na medida em que novas sensações que se incorporam à nossa textura sensível são intransmissíveis por meio das representações de que dispomos. Por essa razão elas colocam em crise nossas referências e impõem a urgência de inventarmos formas de expressão.
…movidos por este paradoxo somos continuamente forcados a pensar/criar, exercício que tem o poder de interferência na realidade e de participação na orientação de seu destino, constituindo assim um instrumento essencial de transformação da paisagem subjetiva e objetiva.
O peso de cada um desses dois modos de conhecimento sensível do mundo, bem da relação entre eles é variável..assim.varia o lugar do outro e a política de relação que com ele se estabelece.
…estratégia de criacao de territórios e, implicitamente, na política de relação com o outro: para que esse processo se oriente por uma ética de afirmação da vida, é necessário construir territórios com base nas urgencias indicadas pelas sensaçoes – ou seja, os sinais da presença do outro em nosso corpo vibrátil. É em torno da expressão desses sinais e de sua reverberação nas subjetividades que respiram o mesmo ar do tempo que vão se abrindo “possíveis” na existencia invidividual e coletiva.
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