Este ensaio faz parte de uma pesquisa em processo. Metamorfoseando o Corpo - O Hibridismo Corporal na Dança Francine Pressi

Imagem pesquisada em: http://photobucket.com/images/danceshoes Acesso em: 04/02/2009 "A hibridação é hoje em dia, o destino do corpo que dança, um resultado tanto das exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua própria formação. (LOUPPE, 2000:31)." Diante de uma era globalizada, e em meio à fragmentação e multiplicidade de estilos e culturas, as sociedades modernas e contemporâneas são marcadas pela dúvida e pela instabilidade, dando origem a novos sujeitos que reúne em suas características corpóreas a incrível habilidade de se “metamorfosearem”, de conseguirem transitar livremente entre territórios até então ditos incompatíveis. E a hibridação parece algo cada vez mais comum entre aqueles que convivem em meio a sociedades contemporâneas e neste caso, mais especificamente na área da dança. Mas antes de nos aventurarmos em discutir sobre o assunto, é necessário primeiramente, compreender o que é um Corpo Híbrido. Laurence Louppe em “Corpos Híbridos” (2000) cita Dena David (1993) - que em seu artigo “O Corpo Eclético” - denomina o corpo híbrido como sendo: "... aquele oriundo de formações diversas, acolhendo em si elementos díspares, por vezes contraditórios, sem que lhe sejam dadas as ferramentas necessárias à leitura de sua própria diversidade. LOUPPE (2000)". O bailarino de corpo híbrido mesmo mantendo resquícios de sua identidade original (abordaremos o assunto mais a frente), encontrou uma estranha maneira de deslizar entre técnicas de dança até então ditas incompatíveis, tendo assim, o domínio não só de uma técnica em particular, mas tendo a capacidade de transitar sobre várias linguagens tendo como base diferentes técnicas de dança. E este processo de metamorfose onde faz uso da plasticidade que possui, repete-se constantemente a cada vez que o bailarino desloca-se entre uma e outra prática de dança. Ele consegue metamorfosear o próprio corpo sem jamais perder a excelência em cada uma das técnicas que pratica. Atualmente, a construção corporal de um bailarino torna-se quase inviável através de uma única prática de dança. É muito comum vermos bailarinos “pulando” de uma companhia para a outra como quem muda de roupa, tendo livre acesso aos mais variados estilos de dança, práticas corporais alternativas e mais comum ainda, notarmos o quanto eficientes são em cada uma destas práticas. Mas de que modo este corpo consegue transitar livremente entre territorialidades distintas sem perder a excelência em cada uma delas? Estariam eles à mercê da moda, fazendo uso de seus corpos, e automaticamente desta hibridação, para trabalharem conforme a necessidade do mercado atual? Estes são apenas alguns dos questionamentos que estarão sendo aqui abordados. Os breves tópicos aqui propostos, ainda que de forma superficial, buscam compreender os mecanismos envolvidos nesta hibridação de corpos e como este processo se dá em um sistema social contemporâneo como o que vivemos atualmente. Vale também salientar, que todos os textos aqui produzidos são apenas processos, pois ainda se está em busca de maiores esclarecimentos, portanto, sujeitos à contestação e abertas a novas formulações. Efeitos da globalização e a formação de Identidades Com base na obra “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” de Stuart Hall, pode-se dizer a partir da idéia de alguns teóricos, que as sociedades modernas no fim do século XX estão sofrendo uma transformação a partir de um tipo de mudança estrutural que vem gradativamente fragmentando tudo aquilo que no passado, nos havia sido dado como sólidas, como noção de unidade. Toda esta fragmentação têm também afetado a noção de identidade pessoal, segundo Hall: "Esta perda de um 'sentido de si' estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma 'crise de identidade' para o indivíduo. (HALL, 2001: 9)". Hall nos coloca que o sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa ou permanente, mas sim, que está sempre sofrendo constantes modificações. “O sujeito assume identidades diferentes que não são unificadas ao redor de um 'eu' coerente”. (HALL, 2001: 13). Além disso, ele também nos coloca que a idéia de possuir uma identidade plenamente unificada é mera fantasia, e que ao contrário disso: "[...] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2001: 13)". O processo de mudanças rápidas e constantes pelo qual passam as sociedades modernas é conhecido como “globalização”, e tem sido a principal distinção entre as sociedades “tradicionais” e as sociedades “modernas”. Atualmente, com o auxílio da mídia, grande parte das pessoas tem acesso direto aos mais variados tipos de informação, isto possibilita que o indivíduo possa escolher entre inúmeras opções diferentes e que teoricamente tenha livre acesso a qualquer uma destas possibilidades (muito embora na prática, nem todos tenham de fato acesso livre à todas estas informações). Hall citando Ernest Laclau (1990) – que usa o conceito de deslocamento – diz: "Uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por 'uma pluralidade de centros de poder'. As sociedades modernas, argumenta Laclau, não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o desdobramento de uma única 'causa' ou 'lei'. (HALL, 2001: 16)". A partir daí notamos uma sociedade moderna caracterizada pela 'diferença', pela possibilidade de produzir diferentes identidades de sujeitos a partir de diferentes visões e antagonismos sociais. Segundo Hall, para Laclau estas sociedades permanecem integradas não pelo fato de serem unificadas, mas sim por conseguirem sob certas circunstâncias, articular todas as suas diferenças, mesmo que parcialmente. E embora seja um pouco assustadora a concepção de uma identidade provisória e inconstante, Laclau afirma haverem alguns pontos favoráveis, que apesar de nos levar a desarticulação de identidades estáveis do passado, nos possibilitaria novas articulações, como a criação de novas identidades e inclusive a produção de novos sujeitos. A construção social do corpo Conforme Denise Siqueira no livro “Corpo, Comunicação e Cultura: a Dança Contemporânea em cena”, o corpo é construído socialmente, sendo considerado espaço e reflexo de cultura. Ele adquiri significado a partir de experiências sociais e culturais do indivíduo em seu grupo. "Sua postura, forma, disposição, suas manifestações e sensações geram signos que são compreendidos por uma imagem construída e significada pelo interlocutor. Os gestos e movimentos desse corpo também são construídos, aprendidos no convívio em sociedade – seja diretamente, no contato interpessoal, ou por imagens e representações veiculadas por meios de comunicação. (SIQUEIRA, 2006: 42)". Para o filósofo Merleau-Ponty a maneira de o indivíduo 'ver' o mundo interfere no corpo, em suas palavras: “(...) Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam.” (SIQUEIRA, 2006:45). Desta forma Merleau-Ponty vê em seu próprio corpo seu ponto de vista sobre o mundo. “O corpo não seria apenas um objeto físico e sim 'aparência' de uma interioridade”. (SIQUEIRA, 2006: 49). A identidade do sujeito está estreitamente ligada ao “lugar” onde ocorre sua formação, onde é moldado o seu próprio “eu”. Estes lugares segundo Hall, permanecem fixos e é onde criamos “raízes”, porém este espaço pode ser penetrado e moldado por influencias sociais diferentes que “cruzam” o espaço e nos possibilitam ter acesso a relações distantes (em termos de local – geográfico), não sendo mais necessária qualquer interação face-a-face. Em termos artísticos, esta ampla combinação de conceitos faz com que a dança amplie suas possibilidades de expressão e rompa com algumas de suas fronteiras permitindo através da dança contemporânea, por exemplo, o intercâmbio com inúmeras linguagens diversificadas. Tradição e Tradução Naquilo que diz respeito à formação de novas identidades, Hall - fazendo uso de um conceito desenvolvido por Robins (1991) - cita os termos Tradição e Tradução. O termo Tradição busca a idéia de recobrar a sensação de unidade e de pureza que foram perdidas na pós-modernidade, e o termo Tradução, refere-se aos indivíduos que foram dispersados de seus lugares de origem, e necessitam agora negociar com as novas culturas que os acolheram sem perder totalmente a sua identidade original. "Eles são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias 'casas' (e não a uma 'casa' em particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural 'perdida' ou de absolutismo étnico. Elas são irrevogavelmente traduzidas. (HALL, 2001: 89)". Com base nas palavras acima descritas, seria possível dizer que a hibridação dependeria de uma série de fatores contidos no ambiente e na subjetividade de cada bailarino, os quais definiriam a disponibilidade e a percepção corporal de cada indivíduo? A percepção corporal seria fundamental à adaptação do bailarino dentro das novas condições (técnicas) propostas a ele? Segundo Dena David (1993) citada por Laurence Louppe em seu artigo, o sujeito não escolhe ter um corpo híbrido, ele é escolhido Os bailarinos que possuem um corpo híbrido são dotados de uma plasticidade que os permitem “desconstruir” aquilo que está em sua memória corporal para então “incorporar” uma nova técnica em seu corpo. "No corpo (...) a relação com o mundo se efetua através de uma gama bastante complexa de mediações, e a aquisição consciente de suas ferramentas simbólicas se faz através de uma lenta impregnação 'epidérmica', em uma longa aprendizagem (LOUPPE, 2000:34)". As informações do meio se instalam no corpo modificando-o e fazendo com que o mesmo, embora continue se comunicando com o ambiente externo, agora modifique sua maneira de se relacionar, ele agora cria novas formas de troca. E para cada novo tipo de aprendizado que o corpo recebe, novas redes particulares de conexão se criam e jamais se perdem. A idéia de Cultura adotada por Katz e Greiner é a de “um sistema aberto, apto a contaminar o corpo e a ser por ele contaminado e não a influenciá-lo ou ser a causa de mudanças visualmente perceptíveis nele” (KATZ e GREINER, 2003: 95). O corpo na contemporaneidade teria a tendência de fazer cada vez mais uso desta plasticidade? Conforme afirmam Flavia Meireles e Alice Eizirik a “plasticidade é a capacidade do corpo se deformar, assumir e entrar em formas, informar, transformar. Ela é anterior ao 'incorporar' (informações), porque o corpo, atingido por uma informação nova, precisa ser capaz de mudar de forma, de deformar-se para depois tornar esta informação integrante ou não dele.” Este mecanismo de constante metamorfose permite ao corpo híbrido não se limitar a um único tipo de códigos. Através da plasticidade ele consegue transitar por entre os territórios da dança e assumir diferentes representações cênicas mantendo a excelência em cada uma das práticas que executa. Mas afinal, com base nas informações citadas, o corpo híbrido é escolhido ou construído socialmente a partir de suas relações com o meio onde transita e exercita suas práticas? Ou seria talvez uma combinação de ambas as possibilidades? A diferença entre hibridação e mestiçagem Há algum tempo fala-se muito em mestiçagem na área da dança, onde a estética de técnicas antigas (antigas no sentido de possuírem maior tempo de existência), a influência do teatro e outras áreas não passam de simples referências, onde o corpo em essência jamais é modificado, apenas cria a “ilusão” de mistura. Para Laurence Louppe, em seu artigo “Corpos Híbridos”, na mestiçagem você pode fazer associações entre técnicas ou estilos de dança, artes marciais e técnicas teatrais, por exemplo, em um único espetáculo, não importando se a estética deste projeto será “impura” , o que importa é que estas são: "[...] misturas que funcionam apenas na superfície. Elas afetam unicamente o mosaico (ou seria o marketing?) que servirá para montar o espetáculo – o seu sistema de produção, por assim dizer. (LOUPPE, 2000:28)". Ou seja, esta mistura será sempre ilusória enquanto o corpo não for afetado. A mestiçagem, ao contrário da hibridação, não transforma a estrutura essencial do sujeito, apenas “enriquece-o pela acumulação de outras heranças genéticas ou culturais”. A idéia de hibridação, na visão de Laurence, torna-se muito mais perturbadora do que a própria mestiçagem, pois segundo ela, a hibridação funciona muito mais pelo lado da perda, pois na realidade ela cria uma relação entre “espécies” – e dentro da dança pode-se dizer entre estilos ou técnicas – “incompatíveis” dando origem a novas corporeidades. Mas será que o surgimento destas inéditas corporeidades funcionaria unicamente pelo lado da perda? Não seria talvez apenas uma questão de ponto de vista? Quando se pensa, por exemplo, em diversidades e interconexão de linguagens dentro de um contexto social em que esta multiplicidade de fatores é muito requisitada, será que a questão da autoria e da originalidade do profissional em dança, não poderia estar sendo visto como um ponto positivo ao buscar o recurso da hibridação? Partindo da idéia de que o “híbrido [...] é frequentemente, totalmente isolado e atípico, [e que] é o resultado de uma combinação única e acidental”. (LOUPPE, 2000), não possuindo nenhuma espécie de referência corporal que o identifique na atualidade, pode-se dizer que o mesmo se dá quando em espetáculos de dança, busca-se trabalhar com uma nova visão ou padrão de movimentos. A partir do momento em que o coreógrafo opta pela criação de uma obra, em que aceita e assume a interferência de outras linguagens no padrão de movimentos, modificando sua estrutura, ele passa a criar uma dança híbrida, não sendo mais possível identificá-la enquanto uma técnica ou estilo específico de dança. E para muitos, o fato de não haver uma referência que a classifique de alguma forma, pode ser algo assustador, ainda mais quando se luta pela permanência de certa “originalidade” no padrão de movimentos, quando se espera perpetuar determinadas técnicas. Considerações Finais Em uma época regida pela fragmentação da cultura, pela multiplicidade de métodos, maneiras de pensar e estilos de expressão tão diversificados, certamente não é uma tarefa fácil apontar exatamente os mecanismos atuantes e as condições favoráveis para a construção corporal de um bailarino de corpo híbrido (ou na busca de um corpo hibrido), pois abrangeria um vasto campo de informações o qual infelizmente, não seria possível aprofundar dentro deste pequeno ensaio. Obviamente ainda há certos questionamentos, que particularmente me intrigam, como por exemplo, quais seriam as conseqüências do excesso desta hibridação no sistema social contemporâneo? Ou será que haverá de fato graves conseqüências para este sistema social? Estas e outras questões, quem sabe um dia, terão respostas e como em um ciclo, nos trarão novas dúvidas. Mas o que se sabe é que é necessária uma análise muito mais aprofundada para que se possam compreender as fronteiras existentes na corporeidade destes indivíduos, e que esta hipercomplexidade do ser humano nos permite visualizar a hibridação sob diferentes aspectos, tornando o assunto muito mais amplo e interessante do que se possa imaginar. Notas 1 - ROBINS, K. Tradition and translation: national culture in its global context. In: Córner, J. and Harvey, S. (Orgs), Enterpriseand Heritage: Crossurrentes of National Culture, Londres: Routledge, 1991. 2 - DAVID, Dena. Lê Corps éclectique. In: Lês vendedis du Corps. Montreal: Jeux, 1993. Bibliografias SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. “Corpo, Comunicação e Cultura: A dança contemporânea em cena”. – Campinas, SP: Autores Associados, 2006. HALL, Stuart. “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” (Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guaciara Lopes Louro) – 5 ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LOUPPE, Laurence. “Corpos Híbridos”. In: SOTER, S. e PEREIRA, R. (Orgs.). Lições de Dança 2. Rio de Janeiro, UniverCidade Editora, 2000. LIMA, Dani. “Corpos Humanos Não Identificados: Hibridismo Cultural”. - Corpo na Dança. In: SOTER, S. e PEREIRA, R. (Orgs.). Lições de Dança 2. Rio de Janeiro, UniverCidade Editora, 2000. KATZ, Helena e GREINER, Christine. “A Natureza Cultural do Corpo”. In: SOTER, S. e PEREIRA, R. (Orgs). Lições de dança 3. Rio de Janeiro, UniverCidade Editora, 2003.
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