ENSAIO SOBRE UM CORPO DA MÍDIA: BELEZA E PODER

Quero trazer a idéia de que as relações de poder permeiam também a preocupação e busca incessante atual pela manutenção da juventude e beleza. Manobras neo-liberalistas não são exclusividade de ações políticas partidárias, mas estão presentes em nosso cotidiano e emaranhadas na mídia e na cultura. Noam Chomski, em "Razões de Estado", fala da manipulação da mídia como manobra dos governos democráticos ou imperialistas. Quero ampliar a discussão para esferas um pouco mais sutis – a esfera da imagem pessoal, da subjetividade: o corpo. A imagem do corpo difundida pela mídia circunscrita no meio capitalista é a de um corpo jovem, sadio e belo. Mas, perguntemos: o que é belo? O que é saudável? Quero dizer que esses conceitos, mais do que possamos responder à primeira instância, são conceitos altamente maquiados por uma relação de estética e poder. Além de tecer essas considerações, quero complicar as questões, de modo a enriquecê-las, argumentando que a arte contemporânea, em especial no universo da dança contemporânea, é o único meio de fuga desse lugar onde o corpo está aprisionado a uma estética fake, de corpos mutantes promovidos à custa de tratamentos estéticos possantes, de revoluções químicas de medicamentos divinos – anabolizantes ou repositórios hormonais, epopéias ritualísticas travadas incessantemente pelos devotos do corpo ideal em novos templos sagrados como as academias, clínicas de cirurgias plásticas e spas... A dança contemporânea discute o corpo na pós-modernidade, o corpo ideal para a vida, redefine e reinventa a realidade, numa prece utópica por mudança de configuração de uma realidade atual que busca atrasar os relógios e remodelar a carapaça muscular e dermatológica humana, acarretando também numa mudança de percepção de mundo e do olhar para a subjetividade. Da mesma forma, a dança contemporânea traduz, entre outras facetas, um desejo de desconstruir e desmantelar as estratégias de venda do corpo midiático, prostituído pelo desejo de poder: o poder de ser o que se deseja – seja esse “desejar” uma vontade pessoal – a “tesoura do desejo – desejo mesmo de mudar” - ou um desejo conectado com a sociedade corrompida pelo consumo, pela moda e pelo design, invenções estratégicas de um capitalismo que afeta o corpo, transformando e padronizando uma forma única de estar e captar o mundo: o “traje sagrado” – como escreve Martha Graham - com que entramos na vida e que “vestimos” até o fim dos nossos dias, se assim se pressupõe corpo X mente como instâncias separadas, ou se existe ainda uma fé no espírito.

A tecnologia não faz do corpo objeto obsoleto. O corpo é transformado, evolui. O pós-humano não é ironia de um mundo dominado pelo futuro cibernético: é ilusão de não perceber que a subjetividade coexiste mesmo num corpo “turbinado”, “eficiente”. Não defendo a loucura contemporânea da mudança com fins absolutamente estéticos. Entretanto, acredito que a própria busca do sujeito por uma estética vendida como “ideal” pelos meios midiáticos é também uma estratégia de permanência sistêmica. Encontrar o parceiro na batalha da night é uma forte razão para muito desses corpos dopados de química ou de próteses. Balançam freneticamente e desfilam ao som do “bate-estaca” das raves todas as coleções de bonecos e bonecas já inventadas (Barbies, Susies, Kens, Falcons... E fazem, com sua beleza estonteante, se esconderem, no fundo do mar, os surreais horrorosos e indesejáveis Bob Esponjas: os caretas, quadrados, fracos e sujeitos a deformidades). Sexualmente movidos, sentem-se seguros e confiantes em seu poder de sedução e se auto-afirmam exibindo seus músculos esculpidos por horas a fio ou comprados, sem pudores, em pouca roupa – e marcas caras – e com muito suor e desespero por companhia. Quantidade é valor maior que qualidade. Na verdade, eles tornam-se uma versão remixed and revisited da solidão moderna do flaneur de Baudelaire. Corpos não-identificados sob a escuridão da noite. Ou melhor, da boite. E a busca é por iguais, compatíveis. Peitos siliconados, bocas enxertadas de colágeno, rugas com fios de ouro e expressões congeladas de botox não é mais exclusividade do gênero feminino. Os machos metrossexuais, emos e/ou travestis também compram a beleza disponível nas “feiras”: as prateleiras das farmácias e os tabuleiros de bisturis das mesas cirúrgicas. O “Admirável Mundo Novo” está em cada esquina. Os salões de cabeleireiros são fábricas de louras (Men prefer blondes?) e cabelos enchapados, com corpos rígidos para não desfazer o truque cosmético do fio liso. Para a mídia, não adianta apenas usar creme dental: preciso ter um corpo escultural para portar um sorriso branco e saudável. Não adianta só tomar cerveja: tenho que ter uma namorada loura e gostosa para acompanhar. Pouco importa se ela é tão gelada quanto a cerveja... Enquanto isso, na madrugada, alguém é espancado até a morte. Os gays imitam os héteros ou vice-versa? Como identificá-los? Hoje, todos são pitbulls tatuados que saem aos bandos sem suas guias, mas exibem - orgulhosos - suas coleiras estranguladoras. Quanto maior for sua corrente, maior sua virilidade e seu poder. Não importa com quem estou em quatro paredes. Ou se estou de quatro.

A arte da dança contemporânea não privilegia determinada estética ou forma. Privilegia a reflexão e questionamento sobre seus conteúdos. Sobre o corpo, não determina quem pode ou deve dançar, apenas aprofunda o olhar para o que o corpo provoca. Qualquer corpo: o da moda, da mídia, o “top”, o popular, o comum.

Sejam bem vindos à dança da democracia do corpo: sereias - podem vir sem pernas; Netunos - tragam seus tridentes; pérolas negras - saiam das ostras. Bob Esponjas. Emergem todos: deficientes, pobres ou diferentes. O belo, na dança contemporânea, é o corpo individual, único. O que está inteiro de seu potencial. O corpo que se assume, e que destrói, assim, qualquer tentativa de manipulação, de qualquer natureza. [...] a ginástica. os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do corpo... tudo isso conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reinvidicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. (Michel Foucault, em "Microfísica do Poder").
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