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29 mar 2009 | Fábio Cesnik
O debate sobre Lei Rouanet (8.313/91) tem produzido uma acirrada troca de idéias nos meios de comunicação e espaços culturais, dentre os ativistas culturais e no próprio governo. Algumas questões, de tanto que são faladas, vão produzindo verdades universais sobre conceitos relativos; Eis o pior que pode acontecer com qualquer debate público que não se pretenda viciado.
Em primeiro lugar, por mais que possa parecer repetitivo, vale esclarecer que a lei é um mecanismo de financiamento de ações culturais, a partir de três fontes distintas: recursos públicos (FNC), recursos oriundos de incentivo fiscal (MECENATO) e, por fim, recursos privados (FICART). Todos esses mecanismos estão, ao contrário do que muitos dizem, regulamentados e em vigor.
Para cada uma dessas fontes foram produzidos debates e regulamentos ao longo dos últimos anos que fizeram com que, cada qual a seu modo, se desenvolvesse de maneira diferenciada. Como qualquer legislação de fomento que cresceu e tem permitido que muitas ações culturais aconteçam por todo o país, a Lei Rouanet poderia ficar ainda melhor se fosse reformulada. E aqui começa o debate.
Ressalte-se que esses pontos de melhoria vêm sendo discutidos pela sociedade civil e pelo governo há muitos anos. Trazê-lo à tona justamente nesse momento tem um aspecto positivo, de que sempre o debate é saudável, mas também perigoso, na medida que qualquer rumor mais forte possa ampliar as marolas criadas pela recente crise econômica mundial. Para isso os agentes precisam fazer o debate de maneira muito responsável, com fito comum para o aumento de recursos para um setor estratégico, que é a cultura.
Recursos públicos (FNC)
O Fundo Nacional de Cultura é composto de recursos orçamentários, de três por cento da arrecadação das loterias federais, de devolução de valores não utilizados nos projetos de mecenato, dentre outras fontes apontadas pela legislação, como legados e doações.
No texto original da lei, a competência por definir o plano de trabalho do fundo era da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) e sua gestão, meramente executiva, ficava a cargo do Ministro da Cultura, juntamente com o Secretários do MinC e os presidentes das entidades vinculadas ao Ministério (Funarte, Iphan etc.). Em 1999 temos a primeira modificação: o fundo passara a ser gerido somente pelo Ministro da Cultura, sem participação dos demais membros do Ministério ou mesmo da CNIC. A CNIC, para a Lei Rouanet original, representa a garantia de uma forte participação da sociedade na gestão dos recursos públicos, que sofre aqui com a diminuição de seu papel.
Em 2006 é editado o Decreto nº 5.761, que altera o poder decisório do fundo, passando-o às mãos do Secretário-Executivo do MinC, com a participação dos demais secretários e presidentes de vinculadas (que passam a integrar a chamada “Comissão do Fundo Nacional de Cultura”). Na verdade, o Ministro nesse caso homologa o plano e projetos apresentados pela Comissão do Fundo. Nada é tratado sobre competência da CNIC ou mesmo sobre participação popular nas instâncias decisórias, mantendo-se a decisão no âmbito da estrutura do MinC.
Além das ações sob decisão autônoma do Ministério, integram o fundo dois outros mecanismos importantes: as emendas parlamentares, que estão sob o comando dos deputados federais e da Casa Civil e, em outro lado, o Fundo Setorial Audiovisual (FSA).
O FSA cria uma fração dentro do fundo nacional de cultura abastecida pela CONDECINE (tributo criado para colaborar para o desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira). O documento que cria o FSA (Lei 11.437/06) institui para geri-lo um Comitê Gestor, com participação de representantes do Ministério da Cultura, da Ancine, das instituições financeiras credenciadas e do setor audiovisual (participação da sociedade).
Com seus instrumentos geridos diretamente pelo Ministério da Cultura, o fundo tem uma destinação de recursos sem uma política definida, para dizer o mínimo. Como a decisão é de competência do gestor de plantão, o formato que os recursos são repassados depende exclusivamente do estilo de gestão; Alguns mandam mais dinheiro para atender um tema específico de interesse, outros favorecem um estado ou cidade que lhe interesse, ou mesmo qualquer deles atende pedidos “políticos” de toda ordem.
O FSA, mais estruturado e com participação da sociedade, tem uma gestão mais transparente e sua utilização tem sido aplaudida pelo conjunto da sociedade.
O Mecenato
O Mecenato foi, de todos mecanismos, o que mais sofreu nesse período. Isto se deu por um alargamento no seu papel: ações que poderiam ter sido realizadas com recursos privados foram todas custeadas com o incentivo e, na contraparte, ações que eram função do Poder Público financiar com dinheiro orçamentário, avançaram também para criar operações com o incentivo.
a) Poder decisório - Mecenato
O poder decisório sobre os projetos a serem aprovados no Mecenato era originalmente da CNIC. Em 1999, na mesma lei que altera a competência do fundo, passa-se a decisão de tudo ao Ministro da Cultura e a comissão (CNIC) passa a ter um papel meramente consultivo. De novo, no segundo mecanismo da lei planejado para trazer a sociedade a participar, o Estado corta os instrumentos de participação popular.
Paralelamente ao que está expresso na legislação, a CNIC tinha um papel junto ao MinC, no principio da década de 90, estratégico na construção de políticas públicas. Importantes pensadores da área cultural de nosso país foram membros da comissão nesse período. Ao longo do tempo, no entanto, seu papel foi sendo desprestigiado pelos Ministros que passaram pelo posto. Mais que isso: mesmo não tendo a comissão poderes de aprovação, o Ministério usou a prática de cortar um ou outro membro sem explicação, ferindo os princípios republicanos de gestão.
b) Distribuição geográfica
O incentivo fiscal da Lei Rouanet baseia-se na destinação de um percentual do imposto de renda das empresas tributadas no lucro real e das pessoas físicas para projetos culturais previamente aprovados pelo MinC. As pessoas físicas ou jurídicas tendem a aplicar o seu imposto de renda nas ações que aconteçam na sua esfera de atuação estratégica/geográfica. Neste sentido, não há na lei mecanismos de permitam a distribuição regional, obrigando que os empresários invistam mais num local ou em outro.
Recentemente foram divulgados os números da ainda jovem lei de incentivo ao esporte. O mapa de distribuição segue exatamente o da Rouanet; Isso por dois motivos essenciais: a distribuição realizada conforme o imposto de renda devido e a baixa divulgação da lei. E qual a solução sugerida pelos executivos do MINE, na minha visão corretas? De um lado a realização de seminários em todo o Brasil para divulgar a lei, de outra buscar formatos de premiar a distribuição mais nacional dos recursos. Aqui poderíamos acrescentar outra visão: a criação de mecanismos de captação de pessoa física fora do eixo, mas com grande massa de IR individual, para programas consistentes de busca de patrocínio.
A solução não é agir despoticamente com o empresário, mandando que ele coloque num lugar ao invés de outro. A solução é aprimorar o mecanismo de “premiação” da lei, permitindo com isso a distribuição gradualmente mais proporcional.
Esse trabalho, ainda assim, não depende só de uma ação do MinC, mas em investir no desenvolvimento econômico e social de cada região. O governo deve atuar de forma integrada para que os problemas possam ser resolvidos.
c) A lei está nas mãos dos diretores de marketing
Quando a lei foi criada e logo regulamentada, em 1995, o Ministério da Cultura soltou um documento que dizia “Cultura é bom negócio”. O texto do caderno explicava pro empresário que o Ministério aprovava, desde aquele momento, uma série de projetos de interesse público que poderiam ser alvo de interesse privado das empresas. Aprofundou-se, desde então, os trabalhos de marketing cultural, comunicação por atitude, arquitetura cultural e um sem número de teorias que explicam ao empresário, dentre outras coisas, como se pode ampliar o casamento de beneficio de marca com benefício fiscal.
As maiores empresas desenvolveram departamentos próprios para selecionar projetos e, nesse período, nada mais fizeram do que escolher quais, dentre os projetos aprovados pelo governo, seriam os mais adequados à sua política de comunicação; E fez isso atendendo ao apelo deste documento editado pelo poder público.
As empresas só fazem destinação de valores destinados a pagamentos de impostos caso o projeto financiado interesse a ela. Vejamos o caso da lei de incentivo à criança e ao adolescente. O Rio de Janeiro não permitiu que as empresas decidissem para que projetos seriam destinados seus recursos do fundo da criança e do adolescente, ao passo que o município de São Paulo criou o instrumento da “doação casada”, partindo do principio que o empresário poderia escolher qualquer projeto aprovado. O que aconteceu? O volume captado para beneficiar crianças e adolescentes em São Paulo passou de dezenas de milhões de reais, enquanto no Rio de Janeiro não chegou nem a casa de um milhão. Foi publicado pelo jornal “O Globo” em 03 de novembro de 2008:
“No Rio, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) admite a queda de arrecadação no último ano, depois que foi revogada uma deliberação permitindo às empresas definir para que projetos doar. (…) Os recursos do fundo carioca caíram de R$ 1,7 milhão em 2004 para R$ 332,8 mil em 2007. Em São Paulo, onde há doação vinculada, a arrecadação foi de R$ 4 milhões para R$ 40 milhões no período”.
O mecanismo de incentivo fiscal parte de uma inteligência do legislador em permitir que a empresa participe do processo, ganhando pra isso o “prêmio do incentivo”. Tirar esse poder de escolha das empresas é de uma burrice atroz; É ferir o espírito constitucional da participação comunitária e de maneira ditatorial aplicar “sanção” no lugar de “premiação”.
d) Questões formais
O Ministério da Cultura se apega à leitura da legislação e de determinações do Tribunal de Contas da União de maneira demasiadamente limitada. Em alguns casos a leitura de determinados mecanismos é incapaz de enxergar o conjunto da legislação federal em vigor. Alguns exemplos:
d1) Após uma festa realizada no Museu da República, no Rio de Janeiro, em que um coquetel custou cerca de R$ 780,00 por pessoa, o TCU determinou a revisão desses custos no exame dos projetos (Acórdão 1155/2003). Resultado: o MinC cria problemas até para aprovar a diária de alimentação de artista. Isso não existe; Se os custos forem analisados e corretamente parametrizados, não há porque vetar toda e qualquer despesa com alimentação. Uma diária parametrizada é o que a legislação pede; O que não pode é um coquetel de R$ 780,00 por pessoa.
d2) Na orientação dada pelo TCU para que se examinasse a representação processual nos casos de incentivo, o MinC passou a impedir o cidadão de se fazer representar por advogado. Os advogados tem seus direitos limitados no MinC, não podendo postular nos processos. Isto é absurdo; Fere o Estado Democrático de Direito, para dizer o mínimo.
d3) Por orientação de técnicos do MinC, várias empresas e instituições já mantiveram centenas de funcionários na informalidade, pois a orientação do MinC é a de que “pagar salário com recursos incentivados seria uma forma indireta de contratação de servidor público sem concurso”. Ora bolas, como alguém pode orientar de maneira contrária à legislação trabalhista brasileira (CLT), como se o incentivo ou o entendimento técnico de alguns arautos estivesse “acima” de todo ordenamento jurídico? E a política do governo de gerar emprego formal? Felizmente isso vem a ser esclarecido no Decreto 5.761/06, mas não ainda difundido dentre os usuários e técnicos do MinC.
O FICART
Ao contrário do que muitos dizem ou pensam, o FICART está regulamentado pelo Presidente da República e pela CVM, Comissão de Valores Mobiliários, pronto pra uso. Como os projetos de incentivo fiscal ganharam um apelo enorme, as empresas e produtores não sentiram necessidade de apoiar suas ações num fundo dessa natureza.
CAMINHOS E PROPOSTAS
Ao contrário do que se possa parecer, o exposto acima não deixa a necessidade de aperfeiçoar a Lei Rouanet de lado. O que entendo, acima de tudo, é que os maiores problemas da lei estão na sua implementação, e não no seu texto. Mas é claro que o texto pode ser melhorado para que o mecanismo se torne ainda melhor.
As linhas de ataque estão, no entanto, um pouco descolados do que vem sendo discutido hoje. O debate está viciado e tem contribuído pouco para o exame dos problemas reais. Alguns deles:
a) Transferência para a sociedade, em conjunto com o Governo, das decisões no âmbito do Fundo Nacional de Cultura e do Mecenato. Assim era no início da lei e assim deve ser novamente: democracia é essencial nesse processo;
b) Qualquer alteração de lei deve passar por manter conquistas da velha Rouanet, no texto da nova, como por exemplo:
- Não se deve abrir mão de que todos os critérios da nova lei devam estar expressos na própria lei, sob pena de se dar um “cheque em branco” pro dirigente de plantão. As intenções devem estar expressas no texto legal; O texto deve ser formulado com mais critérios objetivos e vinculados, com menos espaço para discricionariedade;
- Na mesma linha de raciocínio, não se deve permitir a questão da “análise de mérito ou cultural” da proposta. Esta medida vai determinar práticas arbitrárias pelo administrador público de plantão e isso deve ser afastado: a censura acabou (e já foi tarde);
c) Criação de algum tipo de estímulo fiscal ao FICART, tal como foi realizado no FUNCINE, com a perspectiva de ativar seu funcionamento. Fazer pra isso uma grande consulta junto aos agentes financeiros para tentar criar um mecanismo equilibrado;
d) Deixar claro, no texto da nova lei e, apesar da redundância, os princípios de:
- Critérios de representação, na impossibilidade ou opção do proponente;
- Possibilidade e estímulo à contratação no regime CLT, na perspectiva de inserir mais profissionais da área da cultura na formalidade (o último decreto – 5.761 - já realizou parte desse trabalho, mas considero uma questão importante que deveria ser esclarecida também pela lei);
e) Escalonar percentual do imposto de renda, de modo a criar uma alíquota maior do que os “4%” para as empresas menores, com vistas a ampliar a participação democrática nos mecanismos de incentivo fiscal;
f) Estruturar formatos de “premiar” empresas que invistam fora do eixo econômico brasileiro. Levar em consideração que não basta distribuir melhor entre as capitais da federação o incentivo, mas que haverá premiação adicional para investimento nos vazios culturais das grandes cidades, da mesma forma. No caso do FNC o investimento maciço e prioritário deve compensar as realizações com incentivo fiscal, o que não tem ocorrido.
Algumas idéias simples foram apresentadas nesse documento, no intuito de melhoria da lei. Temos um mecanismo forte e importante para o desenvolvimento cultural brasileiro.
Todo o processo de mudança deve considerar o cenário de crise econômica atual. É impensável, até a recuperação dos mercados, pensar em diminuir percentuais de abatimento em imposto para determinadas áreas, por exemplo. O MinC deve seguir a postura do governo como um todo sobre esse tema: não é o momento de restringir benefícios, mas de ampliá-los para que o setor não perca a musculatura. Assim tem feito na industria automobilística, com diminuição de IPI e em tantas outras.
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