amphi (3)

Amphi por Thaís Gonçalves

Amphi: um sopro em torno do corpo-pedestre Thaís Gonçalves Recentemente ouvi de um artista da dança, que certa vez assistiu a um ensaio da companhia de Pina Bausch na Alemanha, que a coreógrafa dizia a seus bailarinos sentir falta de um ‘vento’ no palco. Isso me fez pensar por outro prisma na idéia de ‘sopro em torno de algo’ que está na raiz da palavra ambiente, originária do grego ‘amphi’ (‘em torno de’), como descreve Helena Katz no texto O coreógrafo como DJ, publicado no livro Lições de Dança 1 (1999, p.15). Essa forma de pensar a dança e o ambiente como sopro levou-me a perceber uma riqueza de nuances no espetáculo Amphi, última criação de Aspásia Mariana, apresentado junto com a bailarina Roberta Bernardo, no mês de junho de 2009, no projeto Quinta com Dança, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O som marcado e ressoante de uma guitarra elétrica aliado a luzes coloridas piscando no escuro do palco me descolaram de um ambiente já dado e percebido. Naquele tempo e espaço cênico que começava a se constituir, uma ampliação de sentidos expandia em mim uma vontade de partilha, de sair de mim e ir ao encontro, despertada por um estranhamento ao que se anunciava ainda sem nome, sem conceito, sem um a priori. As bailarinas interagem com as luzes que piscam, riscando-as no espaço com as mãos, deixando rastros de partes de seus corpos que surgem e desaparecem, num jogo de visibilidade e invisibilidade em trânsito. E então uma faixa de pedestre é desenhada em feixes de luzes, atravessando o palco de uma coxia à outra. Em uma tela ao fundo, imagens de cruzamentos da cidade, de aglomerado de pessoas em trânsito, no trânsito, a transitar nesse ambiente cotidiano que a artista pinça para atravessar em nós uma presença da vida na relação com a arte, abrindo ali a possibilidade de produzirmos pensamentos, emoções, sentidos distintos diante de situações aparentemente habituais e iguais. Neste momento a platéia entra na cena, sendo convocada a levantar-se e a perceber seu em torno, cumprimentando quem está a sua direita, à esquerda, à frente e atrás. Afinal, qualquer dia cada um de nós pode voltar a cruzar com estas pessoas, no inusitado tempo e espaço da vida cotidiana, como brinca conosco o texto apresentado na tela. Esta parte do espetáculo me trouxe uma sensação diferente do que o autor Luiz Camillo Osório chama de ‘subjetividade em trânsito’, que nesta obra ganham outra possibilidade de percepção. Tem sido bastante comum nos discursos a cerca da arte contemporânea pensar a arte como algo que acontece ‘entre’, na relação artista e espectador, que não é fixa, imutável, hierárquica, mas dinâmica, móvel e relacional. Nesse contexto contemporâneo, não há sujeitos previamente constituídos, mas subjetividades em construção e desconstrução, que territorializa-se e desterritorializa-se ao mesmo tempo, em fluxos intensivos, em trânsito. Que em Amphi pode acontecer ao som de buzinas e roncos de veículos, porém uma subjetividade em tessituras que nos fazem percorrer caminhos mais sutis e que me interroga em dança: que corpo é esse, de que cidade se trata, que dança é essa? que relações estão sendo estabelecidas? Um corpo pedestre: poderia ser uma resposta? Lembro-me de Yvonne Rainer, da geração da Judson Church que promoveu, nos Estados Unidos das décadas de 60 e 70, uma radicalização de experimentos reunindo bailarinos e não-bailarinos, onde toda e qualquer regra foi abolida para que novidades pudessem ser criadas com o mínimo de contaminação dos referenciais já dados – ‘corpos pedestres’, como descreve a professora da Universidade de Paris 8, Isabelle Ginot, em entrevista à OlharCE – publicação da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Estes experimentos passaram a ser nominados de dança pós-moderna e, em mim, despertam um universo referencial que vem à tona quando ouço o som do carro da pamonha anunciando: “Atenção freguesia, o mais puro creme do milho verde está chegando no seu bairro. O carro da pamonha se aproxima. Atenção. Alô alô freguesia. Olha aí, olha aí, olha aí freguesia. Temos a melhor pamonha de São Paulo. Venha saborear o mais gostoso e delicioso curau de São Paulo. Pamonhas fresquinha, curau fresquinho. Uma maravilha de pamonha. Uma maravilha de curau. É uma delícia de curau. Pamonha caseira. Pamonha, pamonha, pamonha”. Som que se contrapõe, ao mesmo tempo em que dialoga, com as bailarinas que, cada uma em um foco de luz e com uma placa de papelão à sua frente onde inscreve-se “VENDE-SE”, vão vestindo peças de roupa, sobrepondo umas sobre as outras, numa acumulação de vestes que vão ainda me remetendo tanto ao espetáculo Mauvais Genre do coreógrafo francês Alain Buffard, apresentado em Fortaleza na Bienal Internacional de Dança do Ceará em 2005, como ao trabalho do também francês Jérôme Bel intitulado Shirtology. A proposta de Amphi é distinta em relação à proposta artística dos coreógrafos franceses, porém fricciona em mim uma nova maneira de pensar os vínculos entre signos e sentidos, entre o estético, o ético e o político. O que estaria ali à venda? São instantes de precipitação até a chegada em mim do vento, do sopro que nos faz sentir, perceber, vivenciar o em torno, como quando uma chuva se anuncia e chove. Na grande tela ao fundo do palco, uma sequência de gravação é exibida pela perspectiva de quem percorre a cidade, no caminho para casa, em uma bicicleta. Contrapondo novamente o som da cidade, que quase sempre acabamos por associar a barulhos desagradáveis, Aspásia Mariana nos convida a compartilhar com ela um percurso de sentidos cuja trilha sonora é All my loving (Todo meu amor), música dos anos 60 dos Beatles, que nos diz: “Feche os olhos e eu irei te beijar | Amanhã sentirei saudades de você | (...) Vou fingir que estou beijando | Os lábios que sinto saudade | E esperar que meus sonhos se tornem realidade | E enquanto estiver fora | Escreverei para casa todo dia | E mandarei todo o meu amor pra você”. Nesse cruzamento entre imagem em trânsito e no trânsito alinhavado com Beatles, começo a sentir um vento em torno de mim, como se eu estivesse a guiar a bicicleta, num tempo e espaço que não é o da cidade em seu cotidiano, mas a cidade que me habita e que, em nesta relação estabelecida com o espetáculo Amphi, me fazem “ver com os olhos do espírito”, como também fala o autor Luiz Osório, referindo-se à filósofa Hannah Arendt que, em sua obra, diz que o homem moderno teria perdido a capacidade de pensar e de sentir, portanto também de agir politicamente no mundo. Penso que Amphi tem em si uma potência latente em construção que já é forte o suficiente para nos surpreender e nos falar, portanto uma obra da ordem do partilhar conosco uma escuta que diz respeito à época vivenciada, percebida e imaginada por Aspásia Mariana, uma artista inquieta que procura “zonas de turbulência, zonas de caos, onde os movimentos sutis, ainda inclassificáveis, tomam origem. É procurar penetrar nessa zona de risco e desposar o seu movimento – e devir, e criar”, como pontua o filósofo português José Gil, no livro Movimento Total: o corpo e a dança (2004, p. 169), ao tratar da obra da coreógrafa americana Yvonne Rainer. Que venham mais sopros tão autorais quanto estes a nos fazer deslizar ‘em’ e ‘de’ nossa realidade insistente para nos transformar e disseminar em nós sentidos, confrontar idéias e instaurar em nós regiões de ressonância em fluxos artísticos. Sopros de suavidade, intensidade e intempestividade que acionem em nós a capacidade de sentir, pensar e agir que sejam contíguos.

foto: Alex Hermes Diálogos que sopraram este texto: BIENAL INTERNACIONAL DE DANÇA DO CEARÁ. Desfazer hábitos para liberar o imaginário. In: OLHARCE – A Revista de Dança do Ceará. Ano I, Nº 1, p. 62, Dez/2008. [O trecho citado diz respeito a um trecho não publicado da entrevista] GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. KATZ, Helena. O coreógrafo como DJ. In: PEREIRA, Roberto e SOTER, Silvia (Orgs.). Lições de Dança 1. 2ª edição. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2006. OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005
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crítica do espetáculo Ah!

Fortaleza-Ce, 09 de junho de 2009. PONTO DE VISTA, POR *LÚCIO LEONN O mais recente espetáculo apresentado no projeto Quinta com Dança, em cartaz no Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, durante o mês de junho, traz a marca maior da amizade e de concepção entre os participantes da Cia. do Barulho. “Ah!”, é um espetáculo interjetivo da Companhia, que pelo nome, leva o Barulho. “A” de Aspásia e “H” de Heber. Vocaliza-se, em: “AH!” O primeiro: Estares, um solo de Heber Stalin e o segundo: Amphi (entorno de.), duo com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo. “Estares”, se revela uma potência, que produz um efeito em silêncio e tempo de sutileza poética. E, o que poderíamos denotar logo como prólogo de cena? É um corpo em querer ficar “parado” mas ao mesmo tempo, perpassar entre nossos olhos de ouvintes, percursos internalizados por rapidez, nervuras e músculos. Há no centro do trabalho, espaços em ocupação e exploração de sentidos. Exploração de entradas e saídas de cenas ou, da própria vida/arte enquanto retermos ar nos pulmões. De ações de movimentos do intérprete/personagem em diálogo cênico com o expectador, pode suscitar em nós um tempo breve do querer Ser e do estar Sendo. Espaço atemporal de movimentos, templo da vida, do pulsar da arte. O solo prossegue em diferentes situações: no plano e níveis da “restrição” de movimentos pelo intérprete, de não “poder sapatear” de verdade. Do espaço cênico/iluminação em foco e de cena aberta, a partir da procura do intérprete em fisicalizar um corpo que ocupa espaço sob à luz do refletor; do humor e imagem cinematográfica de Chaplin, conduzida em projeção. (Momentos eternizados em nós pela iconografia em obra apreciada). Ou, de movimentos incessantes realizados por Stalin, em busca de pertencer o mundo habitável e inabitável de diferentes lugares, dentro, ou fora. Por outro lado, o figurino do intérprete, poderia ser mais bem pensado e executado no que diz respeito, sair do modelo padrão de vestimento masculino de certos espetáculos de dança, apresentados na cidade. Fica a cargo da pesquisa do coreógrafo, do intérprete ou do encenador teatral a concepção estética do figurino? Logo, de uns tempos para cá, sem aqui querer ser moralista, caracterizou-se entre os jovens intérpretes, bailarinos iniciantes: o culto ao ego, em querer mostrar o corpo em cena, e não o figurino reconhecido como parte atuante, de ideologia, na obra artística. Mas sim, esbanjando sensualidade pessoal e de insinuações de gênero sexual. Não é o caso de, Stalin. Falo, brevemente, de postura política e não, do corpo em cena. É um outro devir a favor do pensamento da formação profissional e da proposta cênica encaminhada ou, mesmo de poder estar em dança, pelo ofício e alma de artista. O querer ser e estar sendo com atitudes e com respeito, caminham juntos. E, o corpo, a dança e ser ético na vida e na arte, também. Continuando, em “Amphi”, duo com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo, o espaço de moderação da dança segue a princípio, com indução na platéia, a facilitar e interagir com um jogo dramático e a fé cênica a ser guiada; ação realizada por palavras de ordens projetadas na tela. Nos causa uma vibração e estranhamento ao mesmo tempo. É preciso se relacionar com as pessoas não somente ao seu lado. É, se dispor. Entra em cena um corpo sociável e de correlação, com: a cidade, as coisas, o dia/noite, os sons, as pessoas, em torno de si mesmo e do todo. Por fim, exibido dois instantes de dança em único espetáculo, ambos sob direção de Aspásia Mariana; de antemão, permanece para o público, características distintas de interpretação e a perceber quando os corpos, tais ideias de movimentos e de cenas, ainda em espaços e de presenças dos intérpretes, configuram dois dançares. No primeiro, não se sapateia, mas prolifera-se atmosfera. Uma “Ode ao Sapateado”, assim, poderíamos descrever - (singularidade principal hoje, dos intérpretes da Cia. do Barulho, principalmente, apresentado e evidenciado no momento solo de, Heber Stalin). O segundo instante, se conota um frisson urbano de um corpo empírico e cicatrizado por suas raízes de pertencimento, ou sempre um corpo a procura de habitar, entorno de, espaços, tempos, palavras e verbos – às vezes, perigos em cidades grandes, que nos faz reagirmos e coagirmos com o corpo e o outro, ao léu. Serviço: Quinta com Dança, em cartaz no Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura durante o mês de junho: “Ah!”, espetáculo da Companhia do Barulho. Com dois momentos. O primeiro: Estares, um solo de Heber Stalin e o segundo: Amphi, com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo. Quintas. Dias 4,18 e 25 de junho. (Excepcionalmente, será apresentado, Sexta-feira, dia 25 de junho). Sempre às 20 horas. ________________________________________________________________________________________________ *Lúcio José de Azevêdo Lucena-Lúcio Leonn, é artista/educador com especialização em Arte e Educação. Aluno da primeira turma do Curso de Extensão “Dança e Pensamento”, da Secultfor/Vila das Artes- parceria com a Universidade Federal do Ceará-UFC.

foto: alex hermes
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Sinopse Ah! é um espetáculo da Companhia do Barulho, que aborda dois instantes. O primeiro: Estares, um solo de Heber Stalin e o segundo: Amphi, com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo. E S T A R E S Um corte no fluxo. Um estalo de presença. Quem está, está? Como instaurar singularidade em contra-ponto a linhas de forças que nos atravessam e insistem em nos impulsionar? Mas... para onde, para que? Por que há pressa? Tempo: um novo experimento de percepção que contemple um corpo em metamorfose, que destoa, que escorrega, que escorre, que se refaz em outras paragens e passagens. Um corpo que urge por uma tecitura autoral que inaugure dançares de um movimento do sentido. Quantos sentidos? De infinitos estares que se organizam para desorganizar e que se desorganizando possam reconfigurar presenças. AMPHI – em torno de. O quê nos cerca? o que nos move? com o quê, nesse ambiente, meu corpo se relaciona e/ou se co-relaciona ? em que tempo? No momento em que a cidade é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva, e desta forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica. A cidade vivida é a experiência ímpar de cada corpo enquanto traz consigo a singularidade de suas ambiências.

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