Publicado por aspasia mariana el 19 de Septiembre de 2009 a las 4:08am
Amphi: um sopro em torno do corpo-pedestreThaís Gonçalves Recentemente ouvi de um artista da dança, que certa vez assistiu a um ensaio da companhia de Pina Bausch na Alemanha, que a coreógrafa dizia a seus bailarinos sentir falta de um ‘vento’ no palco. Isso me fez pensar por outro prisma na idéia de ‘sopro em torno de algo’ que está na raiz da palavra ambiente, originária do grego ‘amphi’ (‘em torno de’), como descreve Helena Katz no texto O coreógrafo como DJ, publicado no livro Lições de Dança 1 (1999, p.15). Essa forma de pensar a dança e o ambiente como sopro levou-me a perceber uma riqueza de nuances no espetáculo Amphi, última criação de Aspásia Mariana, apresentado junto com a bailarina Roberta Bernardo, no mês de junho de 2009, no projeto Quinta com Dança, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O som marcado e ressoante de uma guitarra elétrica aliado a luzes coloridas piscando no escuro do palco me descolaram de um ambiente já dado e percebido. Naquele tempo e espaço cênico que começava a se constituir, uma ampliação de sentidos expandia em mim uma vontade de partilha, de sair de mim e ir ao encontro, despertada por um estranhamento ao que se anunciava ainda sem nome, sem conceito, sem um a priori. As bailarinas interagem com as luzes que piscam, riscando-as no espaço com as mãos, deixando rastros de partes de seus corpos que surgem e desaparecem, num jogo de visibilidade e invisibilidade em trânsito. E então uma faixa de pedestre é desenhada em feixes de luzes, atravessando o palco de uma coxia à outra. Em uma tela ao fundo, imagens de cruzamentos da cidade, de aglomerado de pessoas em trânsito, no trânsito, a transitar nesse ambiente cotidiano que a artista pinça para atravessar em nós uma presença da vida na relação com a arte, abrindo ali a possibilidade de produzirmos pensamentos, emoções, sentidos distintos diante de situações aparentemente habituais e iguais. Neste momento a platéia entra na cena, sendo convocada a levantar-se e a perceber seu em torno, cumprimentando quem está a sua direita, à esquerda, à frente e atrás. Afinal, qualquer dia cada um de nós pode voltar a cruzar com estas pessoas, no inusitado tempo e espaço da vida cotidiana, como brinca conosco o texto apresentado na tela. Esta parte do espetáculo me trouxe uma sensação diferente do que o autor Luiz Camillo Osório chama de ‘subjetividade em trânsito’, que nesta obra ganham outra possibilidade de percepção. Tem sido bastante comum nos discursos a cerca da arte contemporânea pensar a arte como algo que acontece ‘entre’, na relação artista e espectador, que não é fixa, imutável, hierárquica, mas dinâmica, móvel e relacional. Nesse contexto contemporâneo, não há sujeitos previamente constituídos, mas subjetividades em construção e desconstrução, que territorializa-se e desterritorializa-se ao mesmo tempo, em fluxos intensivos, em trânsito. Que em Amphi pode acontecer ao som de buzinas e roncos de veículos, porém uma subjetividade em tessituras que nos fazem percorrer caminhos mais sutis e que me interroga em dança: que corpo é esse, de que cidade se trata, que dança é essa? que relações estão sendo estabelecidas? Um corpo pedestre: poderia ser uma resposta? Lembro-me de Yvonne Rainer, da geração da Judson Church que promoveu, nos Estados Unidos das décadas de 60 e 70, uma radicalização de experimentos reunindo bailarinos e não-bailarinos, onde toda e qualquer regra foi abolida para que novidades pudessem ser criadas com o mínimo de contaminação dos referenciais já dados – ‘corpos pedestres’, como descreve a professora da Universidade de Paris 8, Isabelle Ginot, em entrevista à OlharCE – publicação da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Estes experimentos passaram a ser nominados de dança pós-moderna e, em mim, despertam um universo referencial que vem à tona quando ouço o som do carro da pamonha anunciando: “Atenção freguesia, o mais puro creme do milho verde está chegando no seu bairro. O carro da pamonha se aproxima. Atenção. Alô alô freguesia. Olha aí, olha aí, olha aí freguesia. Temos a melhor pamonha de São Paulo. Venha saborear o mais gostoso e delicioso curau de São Paulo. Pamonhas fresquinha, curau fresquinho. Uma maravilha de pamonha. Uma maravilha de curau. É uma delícia de curau. Pamonha caseira. Pamonha, pamonha, pamonha”. Som que se contrapõe, ao mesmo tempo em que dialoga, com as bailarinas que, cada uma em um foco de luz e com uma placa de papelão à sua frente onde inscreve-se “VENDE-SE”, vão vestindo peças de roupa, sobrepondo umas sobre as outras, numa acumulação de vestes que vão ainda me remetendo tanto ao espetáculo Mauvais Genre do coreógrafo francês Alain Buffard, apresentado em Fortaleza na Bienal Internacional de Dança do Ceará em 2005, como ao trabalho do também francês Jérôme Bel intitulado Shirtology. A proposta de Amphi é distinta em relação à proposta artística dos coreógrafos franceses, porém fricciona em mim uma nova maneira de pensar os vínculos entre signos e sentidos, entre o estético, o ético e o político. O que estaria ali à venda? São instantes de precipitação até a chegada em mim do vento, do sopro que nos faz sentir, perceber, vivenciar o em torno, como quando uma chuva se anuncia e chove. Na grande tela ao fundo do palco, uma sequência de gravação é exibida pela perspectiva de quem percorre a cidade, no caminho para casa, em uma bicicleta. Contrapondo novamente o som da cidade, que quase sempre acabamos por associar a barulhos desagradáveis, Aspásia Mariana nos convida a compartilhar com ela um percurso de sentidos cuja trilha sonora é All my loving (Todo meu amor), música dos anos 60 dos Beatles, que nos diz: “Feche os olhos e eu irei te beijar | Amanhã sentirei saudades de você | (...) Vou fingir que estou beijando | Os lábios que sinto saudade | E esperar que meus sonhos se tornem realidade | E enquanto estiver fora | Escreverei para casa todo dia | E mandarei todo o meu amor pra você”. Nesse cruzamento entre imagem em trânsito e no trânsito alinhavado com Beatles, começo a sentir um vento em torno de mim, como se eu estivesse a guiar a bicicleta, num tempo e espaço que não é o da cidade em seu cotidiano, mas a cidade que me habita e que, em nesta relação estabelecida com o espetáculo Amphi, me fazem “ver com os olhos do espírito”, como também fala o autor Luiz Osório, referindo-se à filósofa Hannah Arendt que, em sua obra, diz que o homem moderno teria perdido a capacidade de pensar e de sentir, portanto também de agir politicamente no mundo. Penso que Amphi tem em si uma potência latente em construção que já é forte o suficiente para nos surpreender e nos falar, portanto uma obra da ordem do partilhar conosco uma escuta que diz respeito à época vivenciada, percebida e imaginada por Aspásia Mariana, uma artista inquieta que procura “zonas de turbulência, zonas de caos, onde os movimentos sutis, ainda inclassificáveis, tomam origem. É procurar penetrar nessa zona de risco e desposar o seu movimento – e devir, e criar”, como pontua o filósofo português José Gil, no livro Movimento Total: o corpo e a dança (2004, p. 169), ao tratar da obra da coreógrafa americana Yvonne Rainer. Que venham mais sopros tão autorais quanto estes a nos fazer deslizar ‘em’ e ‘de’ nossa realidade insistente para nos transformar e disseminar em nós sentidos, confrontar idéias e instaurar em nós regiões de ressonância em fluxos artísticos. Sopros de suavidade, intensidade e intempestividade que acionem em nós a capacidade de sentir, pensar e agir que sejam contíguos. foto: Alex Hermes Diálogos que sopraram este texto: BIENAL INTERNACIONAL DE DANÇA DO CEARÁ. Desfazer hábitos para liberar o imaginário. In: OLHARCE – A Revista de Dança do Ceará. Ano I, Nº 1, p. 62, Dez/2008. [O trecho citado diz respeito a um trecho não publicado da entrevista] GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. KATZ, Helena. O coreógrafo como DJ. In: PEREIRA, Roberto e SOTER, Silvia (Orgs.). Lições de Dança 1. 2ª edição. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2006. OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005
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Publicado por Marcia Sobral el 22 de Abril de 2009 a las 9:00pm
De que natureza era o canto das sereias? Em que consistia a sua falha? Porque é que essa falha o tornava tão poderoso? Há os que sempre responderam: era um canto inumano – sem dúvida um ruído natural (haverá outros?), mas à margem da natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito abaixo e despertando nele esse prazer extremo de cair que lhe é impossível satisfazer nas condições normais da vida. (M. Blanchot) Os espaços públicos de Salvador, Bahia, contam com profusão de imagens de Sereia por meio de desenhos, pinturas e esculturas (em várias escalas, materiais, suportes) é um acontecimento evidente, desde as três esculturas vistas no percurso rápido entre as praias centrais do litoral norte da cidade a partir de Ondina, Rio Vermelho, Amaralina, Itapuã; extensivo à influência dessas figuras e grafismos nos muros, marcas de produtos de design, espaços culturais e comerciais da cidade. Também se verifica essa recorrência do símbolo em locais mais ou menos afastados da orla. Tal característica da cidade pode ser realçada como um plano de consistência estética pelo qual passa a produção de significados e de encontros na sociedade, no ambiente, agenciamentos de enunciação ou produção de subjetividades. Independente das imagens se tratarem de manifestações espontâneas, artísticas, subversivas ou subvencionadas, elas são impostas e intensificadas pela repetição e “empilhamento”. Procuramos a chance de um olhar reflexivo e para redimensionar significados, perceber dinâmicas e desdobramentos potenciais da relação dessas imagens nos espaços da cidade de Salvador; observaríamos isso com uma forma de pensamento em que os corpos, a cidade e o ambiente estejam imbricados, em processo. (Brito e Ahmed: 2008) A imagem de sereia possui uma carga aparentemente fácil de aspectos relacionais, como a presença da tradição clássica latina e grega, o imaginário medieval dos navegantes, o sincretismo com as tradições afro brasileiras, os orixás ‘mãe das águas’, Oxum, Iemanjá, Nanã, presenças potentes no cotidiano dos corpos (e) da cidade, das celebrações das festas de largo do dia dois de fevereiro, como registradas na pesquisa abissal da fotógrafa Isabel Gouvêa. Perguntar quais os devires implicados numa flagrante repetição do motivo sereia, que multiplicidade de forças entoaria a plasticidade social com a presença de tais obras | imagens ou eventos, significa problematizar os nexos de sua relação com as experiências corporais do ambiente, é buscar um plano que recorte a constituição de conceitos que se reorganizam ao habitar essa realidade. Sereia traduz liame, limite, corda e também significa miragem, no alemão fata morgana, ilusão de óptica, refração total da luz na atmosfera. A sereia como um ser insólito, quimera, ilusão, canto hipnótico, abre passagem ao lugar da poética. Maurice Blanchot observa no Livro por vir (O Canto das sereias: o encontro com o imaginário) que Ulisses, na Odisséia, ao burlar o canto das sereias instaura o lugar da narrativa (fala| ordem) contra o da poesia (canto| caos). Em Salvador, a presença constante de obras escultóricas e intervenções que repetem essa imagem nos espaços de circulação como se fossem ‘miragens’ capturadas, cotidianamente, estaria relacionada à ação de burlar e ou de pactuar com esse canto caótico e irracional? Colocar questões a partir de corpos e figuras de sereias materializadas na paisagem com tinta, bronze ou concreto, pode ser colaborar com esse acontecimento estético desdobrado nas esculturas, grafittis, marcas, símbolos, adereços, festas de largo (rua), colaborar como uma forma de experimentação de qualidades das atitudes que circulam com essas imagens, performar (SETENTA: 2008) com o corpo e o espaço desenhos de processos de subjetivação, de semiotização. Compreendendo por produção de subjetividade toda produção de sentido de eficácia semiótica, processos de semiotização (Guattari:1992). Suely Rolnik destaca em Cartografias do desejo, a delicada transição que o homem vem efetuando desde o século XX, sua relação com o caos, que não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano do próprio modo de subjetivação. Uma subjetividade intrinsecamente processual. (Rolnik:1996) Para ela, libertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao caos passaria pela conquista da necessidade de experimentá-los. Nos espaços públicos da cidade de Salvador, o ambiente plural, a intensa troca de semioses com outros corposcidades, onde a presença do “outro” também é uma experiência cotidiana, as imagens de sereia podem ser pensadas enquanto cruzamento de linhas e procedimentos do imaginário social, de signos de assimilação do caos, da sobreposição de inúmeras versões das suas poéticas próprias da cidade e a produção de uma subjetividade que consente na inflexão do vocabulário para a experiência do ambiente. * Esse texto é parte da investigação para a criação cênica [em processo] :: IBIRI | o que desenrolou de repente, de Marcia Sobral :: CITAÇÕES Blanchot, Maurice. O encontro com o imaginário. In: O Livro por vir. Tradução de Maria Regina Louro, Portugal: Relógio D’água, s/d. Britto, Fabiana Dultra e Alejandro Ahmed. Entrevista: Debates em estética urbana 1 – 27 a 31 de outubro 2008. disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba.br/dobra/04_03_entrevista.htm Guattari, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: 34, 1992 Rolnik, Suely e Félix Guattari. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1996 Setenta, Jussara. Fazer-Dizer Performativo em Dança: corpo; cidade; performatividade :Artigo/Ensaio : Debates em estética Urbana 5 - 27 a 31 de outubro de 2008. disponível em http://www.corpocidade.dan.ufba.br/dobra/05_02_artigo2.htm :: SEREIAS .Chafariz de Yemanjá (Concreto revestido com fibra de vidro, Altura = 4,00m), Autor: Bel Borba, 1990, SSA/BA :: Praça Cel. Valdir Aguiar - Itaigara Sereia de Itapuã / Iemanjá (Aço Carbono e Granito, altura = 3,34m com pedestal) - Autor: Mário Cravo Jr, 1958, SSA/BA :: Av. Octávio Mangabeira - Itapuã Sereia da Colônia de pescadores, Artista = Manuel Bonfim, 1970, Altura = 3,74m, Largo do Santana – Rio Vermelho, local que concentra a festa do dia dois de fevereiro e o cortejo de embarcações.
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