Em época de bienal sobre arte e política, pareceu-me oportuna e irônica a promessa trazida no título do solo de dança de Micheline Torres, "Eu prometo, isto é político". Para mim, estava sendo contestada a eficácia de uma arte contemporânea de pretenso engajamento político, que não é capaz de escapar do beco sem saída produzido pela lógica de um mercado que a tudo engole. Nos tempos atuais, as subversões e as críticas são constantemente incorporadas pelas próprias engenharias que pretendem questionar. Vejamos, por exemplo, o retorno dos pichadores – criminalizados por sua ação em 2008 – à bienal, desta vez como legítimos convidados e aclamados como aqueles que verdadeiramente borram as fronteiras entre a arte e a política.
Á revelia da minha prévia concepção sobre os motivos da obra, ficou claro, com poucos minutos de apresentação, que a hipótese da ironia não dava conta do título do solo de Micheline. Havia uma provocação: importava menos se a arte contemporânea é ou não capaz de ser política e mais os múltiplos sentidos que esta palavra pode assumir, bem como atuar e manifestar-se no corpo. Assim, em primeiro lugar, apareceu a marca. Ela não estava ali por acaso, já indicava o estatuto deste corpo em constante tensão entre o emblema que é taxado sobre a pele - como em um animal, de acordo com a própria artista - e a liberdade de escolhas permanentemente moduladas por valores proclamados nos discursos destas mesmas marcas.
O consumo foi a tônica em algumas cenas, mas também os festejos e os esportes. Em todas as situações, sobressaía o corpo tensionado entre forças que pareciam antagônicas e que, no entanto, contribuíam mutuamente naquela construção. As sedutoras cores do consumo e o aprisionamento a um ideal de beleza, a luta incansável pela vitória e o total desfalecimento, a alegria das festividades e a insensatez daqueles movimentos continuamente repetidos, tudo culminava, em algum momento, em gestos de comemoração e agradecimento. As mãos cerradas e os braços estendidos para o alto, ou abertos como se estivessem recebendo uma benção, deixavam uma pergunta: o que é celebrado?
Havia, também, a máscara. O corpo evidenciado em toda sua potência expressiva deixava claro onde podemos localizar, para a artista, a política. “Meu corpo é minha política”, ela diz, e, agora, eu me pego sendo muito restritiva nas minhas conclusões a respeito deste espetáculo, porque estou focada naquilo que vi na cena e, na verdade, o processo de criação tem um papel fundamental naquela provocação proposta por Micheline. Os múltiplos sentidos de política interagem no campo das contribuições fomentadas pela bailarina em suas andanças pelo mundo, nos encontros com as pessoas e as cidades, e vão acabar por se aglutinar em seu corpo, em resultados diversos a cada momento. A máscara confirma esta perspectiva, cada vez mais comum na dança contemporânea, de que não há nada por trás daquilo que se vê, pois está tudo manifestado na visibilidade do corpo e de seus gestos. Se há uma singularidade neste trabalho, ela é resultado dos trânsitos, das conversas, dos afetos, do olhar para o lado, do descentralizar, que faz, como a própria artista diz, com que cada colaborador chegue a seu próprio lugar. A política, portanto, não está em um espaço para além de nossas cabeças, mas no corpo que participa dos espaços por onde transita.